Manderlay

Panfletário em demasia

Manderlay é o segundo capítulo da trilogia do diretor Lars Von Trier sobre os EUA. Em Dogville Lars Von Trier construiu um dos filmes mais instigantes dos últimos anos. Manderlay torna-se um filme obrigatório àqueles que gostaram e/ou se surpreenderam com Dogville.
O excesso de expectativa criado em torno Manderlay torna-se uma barreira praticamente intransponível para Lars Von Trier. Como igualar ou superar uma obra-prima? O diretor mantém toda a estética configurada no primeiro filme. A ausência de cenários já não gera incômodo ao espectador. Ele opta por não aperfeiçoar essa estética. Escolha que leva ao espectador a se concentrar na trama. Apesar do conceito de não existência de portas nos cenários, pode-se ver que o quarto da Srª. de Manderlay, próximo a escadaria do casarão, possui uma porta real. Um deslize bobo e quase imperceptível, mas o começo de uma série de equívocos que o filme possui.
O ritmo inicial do filme é lento, mas vai apresentando gradualmente os elementos que constroem a trama. O dia e a noite em Manderlay são distinguidos pela intensidade da iluminação. No início do filme a pouca iluminação das cenas durante a noite incomodam. Os personagens negros estão pouco visíveis. Reconhecer Danny Glover é um exercício árduo. Não há como entender essa escolha estética, já que ao longo do filme não tem qualquer representatividade. Esse recurso estético torna-se um vilão durante a montagem. Os diálogos noturnos apresentam ocasionalmente diferenças de luminosidade entre o corte de um personagem para o outro. Verifica-se com mais freqüência nos diálogos de Grace(Bryce Dallas Howard) e o pai gangster (Willem Dafoe) dentro do carro. Ao longo do filme Lars Von Trier praticamente não explora novos elementos estéticos. Um equívoco que vai ser evidenciado durante a construção da narrativa.
A ingênua e indefesa Grace de Dogville tornou-se forte e poderosa em Manderlay. O poder de Grace é assegurado através dos gângsters armados que a acompanham. O filme trabalha a forma como enxergamos e obedecemos ao poder. Mas os gângsters são mal utilizados e passam boa parte do filme esquecidos. Quando finalmente a garantia armada abandona Grace, o filme perde uma boa oportunidade de refletir sobre a questão da violência na manutenção do poder e da ordem.
Idealista, Grace liberta os escravos da fazenda Manderlay e submete os brancos, donos da fazenda, a trabalhos manuais. O espectador que no primeiro filme sentia empatia pela figura humana de Grace, não consegue estabelecer o mesmo em Manderlay. Apesar das boas intenções de Grace, ela é tirana e impõe. A liberdade dos negros é relativa se analisarmos o poder armado que Grace possui. Os negros são obrigados a serem livres.
Percebe-se que Lars Von Trier tenta gerar uma antítese da Grace de Dogville em Manderlay. Se antes nossa empatia era voltada para a doce Grace, neste deveríamos ser avesso a ela e empáticos aos escravos. Isso nunca acontece. Lars Von Trier exibe os malefícios que a liberdade gerou aos escravos, como o descaso com a lavoura e a preguiça. Não estabelecida a empatia com nenhum dos lados, no final o filme perde em impacto.
Constituído de 8 capítulos, apenas lá pelo quarto capítulo, o filme gera um real interesse ao discutir as incoerências da democracia. Lars Von Trier acerta em cheio ao mostrar o quanto a democracia pode ser nociva se mal utilizada. Os negros estabelecem votação para todos os assuntos que devem ser discutidos. Mesmo que a maioria concorde, alguém sempre sai insatisfeito. A insatisfação é retratada por simples descontentamento ou até pela morte. A discussão sobre democracia é o melhor ponto do filme, embora não seja aprofundada e utilizada com mais consistência no ato final.
O problema mais grave é o excessivo uso do narrador para explicar a história. O convívio de Grace com os negros acaba por despertar-lhe desejos sexuais. Ao invés de mostrar o crescimento desse desejo através de imagens, o narrador simplesmente informa ao espectador. O que deveria ser construído vagarosamente através de imagens, muitas vezes nos é apenas contado pelo narrador.
Lars Von Trier abdica do caráter estético e imagético do filme, em contra partida a mensagem contra os EUA que intenta e transmitir. Justamente por essa razão a mensagem pretendida por Manderlay não é tão intensa como em Dogville. Ao vermos a Grace de Dogville ser estuprada, a ausência de paredes do cenário traduz a nossa impotência e cegueira frente ao que está tão próximo. Von Trier não consegue despertar desejo em Grace e acaba optando por duas seqüências de mau gosto, a masturbação e a cena de sexo de Grace. A seqüência de sexo é completamente vazia e dispensável.
Perdido entre críticas aos EUA e a comunidade negra, Lars Von Trier no terceiro ato tenta organizar as idéias discutidas e condensar em um ataque contra a cultura americana. A reviravolta promovida pelo negro vivido por Danny Glover dá sentido a parte dos ataques que o diretor pretende com Manderlay. Lars Von Trier tropeça ao esquecer que a cultura vigente que esmaga os negros, não vem só dos EUA, mas também da Europa. A principal questão discutida em Manderlay é levantada pela personagem de Danny Glover. Ele questiona Grace se era coerente a abolição da escravidão mesmo sem um modelo social apropriado para integração dos negros. Questionamento que justifica o modelo social vigente em Manderlay antes da chegada de Grace. Antes de Grace os negros não morriam e não tinham fome. Apenas não eram livres.
Manderlay é mais feliz ao discutir: Nem sempre o que é bom para você é bom para mim. Pena que Lars Von Trier só veja a imposição com uma exclusividade americana. A discussão é enfraquecida pelo ritmo inconstante do filme e o descaso com os personagens brancos da fazenda, os donos e os gangsters. Os donos não possuem expressividade nenhuma frente ao problema de Manderlay, mesmo depois que o gângsteres vão embora. Os gângsteres simplesmente obedecem e não possuem posição alguma referente a escravidão. Quem construiu toda essa indiferença com a raça negra não foram apenas os poderosos do EUA(Grace), mas também a sociedade nela inserida (donos e gângsters e os próprios negros). O filme esquece absolutamente disso.
Mesmo com os inúmeros equívocos Manderlay desperta temas interessantes nos espectadores mais pacientes. Pena que a expectativa criada para esse segundo capitulo transforme-o em uma quase frustração. Ainda sim é um filme a ser assistido. Vamos esperar o terceiro capítulo dessa trilogia e ver o que Lars Von Trier quer realmente com tudo isso.

Manderlay (2005)
Direção: Lars Von Trier
Elenco: Bryce Dallas Howard, Isaach De Bankolé, Willem Dafoe,Danny Glover.

Gilvan Marçal - gilvan@gmail.com