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Crash - No Limite

Um excepcional drama sobre diferenças étnicas e raciais

Crash – No Limite é um daqueles filmes que provocam reações distintas em cada espectador. Alguns amam, outros gostam, porém acham um pouco cansativo montar tantas estórias. Ainda há os que não esperam o filme acabar e se retiram do cinema. Está particularidade de tocar diferentemente cada espectador já o torna umas das obras mais interessantes da temporada.
Crash é dirigido por Paul Haggis, responsável pelo estupendo roteiro adaptado de Menina de Ouro, filme vencedor do Oscar 2005. Como diretor ele possui apenas um trabalho no cinema, Hoje é dia de Rock, nada muito expressivo. Haggis após o reconhecimento pelo trabalho em Menina de Ouro, apresentou aos estúdios um roteiro com 26 personagens e nenhum protagonista. Uma indicação ao Oscar o ajudou a conseguir financiamento para o filme, mas o valor foi relativamente menor do que o padrão das produções americanas. O jeito foi apresentar o roteiro a atores realmente interessados em realizar um bom cinema. Nomes como Brendan Fraser, Sandra Bullock, Matt Dillon e Don Cheadle não só abdicaram dos salários para levar o filme aos cinemas, como apresentaram uma das melhores atuações da carreira.
A partir de um acidente de trânsito, fio condutor que dá título filme Crash, 7 estórias com 26 personagens começam a se entrelaçar. Numa Los Angeles de muitas raças e etnias, Haggis constrói seus personagens buscando em cada uma das principais raças que compõem hoje os EUA. A família persa, os negros, os brancos, os latinos e os de origem oriental (chineses, japonês, etc.) O cruzamento desses personagens quase sempre converge nos mais diferente preconceitos. Apesar da escolha distinta de raças diferentes, o roteiro de Haggis não se situa apenas nas diferenças raciais. O preconceito social e sexual também é explorado. Haggis dirige com bom senso e não deixa o filme cair em lugar comum, o que ocorre com freqüência em filmes que tentam explorar mais profundamente o comportamento humano.
A estória é conduzida através das diferenças raciais e étnicas. Não propriamente fala-se exclusivamente de racismo. Haggis tem o bom gosto de falar do racismo não oficial, aquele que se pratica o tempo todo. Em um diálogo memorável entre dois jovens negros, um indica e questiona ao outro: Por que aquela pessoa assim que nos viu se afastou da gente? O roteiro é eficiente em tocar em máculas relacionada às diferenças raciais, que a sociedade possui e não quer ver. A cena final, que parece nada acrescentar ao filme, ocorre um outro acidente de carro, fechando o ciclo do filme. Pode-se perceber na última frase como o racismo é rotineiro em nossas vidas.
Parece óbvio que um filme com tantos personagens e analisando diferenças raciais teria uma grande possibilidade de ser chato. Prova disso são os primeiros filmes do diretor Spike Lee, onde a questão racial é bem explorada, mas acabam soando panfletários. Haggis com uma direção sutil consegue dar ao filme um ritmo agradável. A montagem de Hughes Winborne é fundamental para construção do filme. Filmes que possuem muitos personagens quando mal montados, dão ao espectador um trabalho extra na decodificação da mensagem. Se ao fim de todo aquele trabalho de decodificação a mensagem ainda sim for mal realizada, não há como espectador gostar. Mas deste problema Crash não sofre. É comum muitos espectadores deixarem a sala de cinema durante o filme. Invariavelmente o espectador tem que montar as estórias. Há espectadores que não se interessam por esse tipo de cinema, onde é fundamental a participação dele.
Pelas as várias estórias alinhadas a comparação com Magnólia de Paul Thomas Anderson e Short Cuts - Cenas da Vida de Robert Altman é inevitável. A sensação ao assistir Crash se assemelha a que se têm ao ver filmes citados, o que convenhamos já é um grande elogio. Intitulo esses filmes de “filme experiência”. Ao assisti-los parece que o espectador é posto em um tubo de ensaio e neste passa por inúmeros experimentos. A cada estória de Crash, o espectador sofre transformações (químicas). Ao fim, é impossível que o espectador saia igual àquele que entrou no tubo de ensaio/filme. Procuro não adiantar nenhum detalhe das estórias, pois não é minha intenção estragar o processo que o filme constrói em cada espectador.
O que Crash deixa bem marcado é como um bom diretor, através de um bom roteiro, pode tirar atuações memoráveis de atores até então inexpressivos. Sandra Bullock, Brendan Fraser e Matt Dillon não são atores que chamam a atenção pela expressividade dramática. Sandra Bullock e Matt Dillon constroem em Crash as melhores atuações da carreira. Matt Dilon interpreta o policial Ryan, que é a personagem mais complexa do elenco. Através de Ryan, Haggis consegue desconstruir a dicotomia, o mal e o bem. Atrás de um policial mau caráter que comete atos repugnantes, há um homem amargurado que pode realizar atos dos mais bondosos e heróicos. Esse paradoxo na personalidade só ocorre pelo simples fato de Ryan ser humano. Mesmo a personagem que se julga ser uma boa pessoa, pode matar e mentir, pois Paul Haggis mostra que o ser humano além de complexo é falível. É neste ser falho que nascem os preconceitos.
Bullock convence numa atuação impar na carreira. Aparece pouco, mas é dela uma das melhores frases do filme. “Eu sinto raiva o tempo todo... Mas eu acordo com raiva todo dia”. Após um assalto, a personagem de Bullock, não conseguindo controlar sua raiva, despeja todo seu preconceito no chaveiro que está trocando a fechadura da porta. Simplesmente por causa da origem latina do chaveiro. Curiosamente a pessoa mais próxima da personagem de Bullock, com quem tem uma afetividade maior, é a empregada latina.
Apesar de grandes nomes no elenco, as demais personagens são interpretadas por atores menos conhecidos, mas muito talentosos. Nota para o diretor de TV negro, Terrence Howard (Ray), o comerciante persa, Shaun Toub, o chaveiro mexicano, Michael Peña e a filha do chaveiro, Ashlyn Sanchez. Justamente os 3 últimos protagonizam a cena mais tensa do filme. Uma seqüência eficiente onde a tensão explode literalmente. Nela Higgs discute o desarmamento com sutileza, deixando claro a questão: Qual a finalidade de um cidadão comprar uma arma? Pena que as campanhas do referendo da comercialização de armas de fogo não tenham tido o mesmo bom gosto e inteligência para explorarem o fato.
Talvez Crash não seja um Magnólia ou nem mesmo um Short Cuts, e nem pretende ser, mas fica evidente através do filme o surgimento de um promissor diretor-autor. Paul Haggis conquistou respeito e espaço dentro da indústria cinematográfica. É muito bom saber que há diretores como ele ainda. Que venha o próximo.

Gilvan Marçal - gilvan@gmail.com

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