O Segredo de Brokeback Mountain
Dentre as várias e gratas impressões que o espectador tem ao assistir O Segredo de Brokeback Mountain, uma em especial tocou-me - como a direção de Ang Lee consegue balancear beleza estética e riqueza conceitual. O filme nos agracia com belas imagens e ao mesmo tempo flerta com o preconceito sexual ainda em vigor na sociedade. Um roteiro eficiente aliado a uma realização cinematográfica ímpar de Ang Lee.
O longa narra o relacionamento de dois homens do campo (cowboys) que aceitam uma proposta de trabalho para pastorear um enorme rebanho de ovelhas até as montanhas. Durante meses, um tem apenas o outro como companhia, e a singela amizade entre eles torna-se um relacionamento amoroso. Com a conclusão do trabalho, cada um segue sua vida, mas as lembranças e o amor da Montanha Brokeback vão os acompanhar e atormentar.
O roteiro de Diana Ossana e Larry McMurtry, baseado no conto de E. Annie Proulx, já é ousado ao cogitar o homossexualismo entre cowboys. O conceito de cowboy carrega o estereótipo de homem americano, viril, machão e truculento. De fato os dois cowboys, Jack (Jake Gyllenhaal) e Ennis (Heath Ledger), seguem essa estrutura clássica. Jack adora rodeios e pretende ser um grande cowboy, ao molde cinematográfico. Ennis é calado, sisudo e deseja adquirir um rancho para viver a vida. Eles são autênticos cowboys e desta forma, a estrutura estética das personagens, gays, nunca é estilizada. Não há trejeitos homossexuais, que muitas vezes são usados no cinema e acabam soando preconceituosos. Ang Lee posiciona a câmera sempre buscando o olhar dos dois, o que reflete a essência da relação amorosa entre eles.
O relacionamento entre os cowboys tem seu início em meados dos anos 60 e a narrativa se estende por cerca de 20 anos. Portanto, o filme termina ambientado na década de 1980. Se bem nos lembrarmos é nesta época que surge efetivamente entre a sociedade a AIDS (na verdade a AIDS surge no fim década de 1970), que era vulgarmente conhecida como a “praga gay”. Interessante como essa informação pode ser útil para entender o destino de Jack na narrativa - o preconceito aliado ao medo. O roteiro explora com eficiência a dificuldade que era, e acredito que ainda é, admitir o homossexualismo para sociedade. A visita de Ennis a família de Jack caracteriza com esplendor essa dificuldade. Os pais sabem que Ennis é um possível namorado de Jack, mas sempre o tratam como amigo do filho. Ennis também faz o mesmo. As barreiras sociais e falsamente éticas impediram que, ao longo dos 20 anos, desde a montanha Brokeback, eles pudessem ficar juntos.
O roteiro primoroso nas mãos de Ang Lee torna-se uma obra de arte. Ressalto a escolha das locações e as construções visuais e enquadramentos do diretor em parceria com o diretor de fotografia Rodrigo Prieto. As belas imagens enchem os olhos do espectador. A composição do rebanho de ovelhas sendo pastoreada pelas montanhas não sai da minha lembrança. A cena valoriza a importância de assistir ao filme numa sala de cinema, pois receio que ela não seja absorvida com o mesmo impacto através do DVD. Mas as belas imagens só se consolidam no espectador com a trilha sonora tênue e triste de Gustavo Santaolalla e Marcelo Zarvos. Ela compõe com ligeira tristeza as lacunas propositais das cenas. Notem a despedida de Jack e Ennis. Eles mal se despedem e Jack pega a caminhonete e vai embora. Parece faltar um adeus ou um até logo. A trilha sonora coloca essas palavras na cena.
É difícil elucidar o primor da direção de Ang Lee sem utilizar inúmeros parágrafos. Saliento duas seqüências que devem ser conferidas com atenção e demonstram a habilidade do diretor. Primeira, o reencontro de Jack e Ennis após quatro anos, quando a esposa de Ennis, Alma (Michelle Williams), o vê beijando Jack. Mesmo que o espectador seja simpático à relação entre os cowboys, não há como não ter pena da esposa ou raiva deles. A situação em que ela é posta a incomoda a partir de então e também incomoda o espectador. Ang Lee suscita o preconceito mais intrínseco do espectador. “Ser traída até entendo, mas por outro homem? Aí não dá”. A segunda seqüência é a de Jack impondo respeito ao sogro em relação à educação do filho. Ele impõe seu papel de homem da casa, e demonstra ao filho que é preciso ter respeito pela mãe e pelo pai. Abre-se então uma discussão extremamente salutar: O fato de um homem ser homossexual não faz dele uma mulher ou um ser afeminado. As atribuições de caráter referente ao gênero (masculino ou feminino) não mudam com a mudança de orientação sexual. É possível ser um bom pai e transmitir exemplos paternos e masculinos ao filho sendo homossexual? Acredito que sim. O roteiro convida o espectador a pensar sobre este aspecto.
Porém, o maior acerto da direção de Ang Lee é conseguir uma atuação ímpar na carreira de Heath Ledger. Sente-se nitidamente que ele foi bem acompanhado durante todo o processo de composição da personagem. Ennis possui um forte sotaque do oeste americano, além de uma voz bem nasalada. Introspectivo, ele expõe suas emoções nas contidas expressões que demonstra. Neste ponto, pode-se sentir a mão do diretor. Heath Ledger nunca esboçou talento para ser um bom ator durante a carreira, mas a paciência oriental de Ang Lee transformou a rocha em areia. Uma atuação suave e crescente que dilacera o espectador vendo-o envelhecer pobre, triste e sem conseguir o amor de sua vida. Jake Gyllenhaal também está ótimo como Jack. O ator dispensa comentários, e creio que sua atuação é apenas a primeira de uma carreira brilhante que virá.
Outro ponto que necessita ser comentado é o trabalho de figurino e a maquiagem. A passagem do tempo da narrativa é percebida pelas mudanças da moda. Os traços estéticos característicos das décadas de 1960, 1970 e 1980 ficam nítidos e ajudam o espectador a acompanhar quantos anos passaram desde o início do romance. O bigode, as costeletas, as roupas, os adereços country e os cabelos femininos mostram a evolução do tempo. Durante a seqüência final, uma série de closes em Ennis mostra queimaduras de sol no rosto, abaixo dos olhos, o que caracteriza o envelhecimento de um trabalhador do campo. A maquiagem tem um papel importante nesta cena. Através dela o espectador percebe quanto tempo Ennis carrega a tristeza que compõe a cena. Rugas e um pouco de cabelos brancos resolveriam o mesmo problema, mas o detalhismo da equipe do filme dão ao trabalhador do campo a face que ele realmente deveria ter. São os detalhes, inúmeros que não consigo citar todos, que fazem da direção de Ang Lee um espetáculo para o público. A obra prima do diretor não só nos faz refletir sobre o preconceito relacionado à orientação sexual, mas também de como vinculamos a nossa felicidade aos parâmetros sociais. É melhor ser advogado a sambista, um homem bem casado a homossexual, um jornalista a um cineasta, etc. Aceitamos o que é sócio-economicamente viável à nossa real felicidade. Apesar do pano de fundo gay, O Segredo de Brokeback Mountain fala sobre estórias de amor mal-sucedidas. Seja o amor de homem por outro, de uma mulher por outra, de uma pessoa por uma carreira ou um lugar, a não concretização deste amor pode deixar seqüelas irreparáveis em um ser humano. Para o mundo entender melhor a tristeza do homem moderno, talvez seja preciso entender quanto este mundo o censurou.
O Segredo de Brokeback Mountain (2005)
Direção: Ang Lee
Elenco: Heath Ledger, Jake Gyllenhaal, Randy Quaid, Anne Hathaway, Michelle Williams.
Gilvan Marçal - gilvan@gmail.com
O longa narra o relacionamento de dois homens do campo (cowboys) que aceitam uma proposta de trabalho para pastorear um enorme rebanho de ovelhas até as montanhas. Durante meses, um tem apenas o outro como companhia, e a singela amizade entre eles torna-se um relacionamento amoroso. Com a conclusão do trabalho, cada um segue sua vida, mas as lembranças e o amor da Montanha Brokeback vão os acompanhar e atormentar.
O roteiro de Diana Ossana e Larry McMurtry, baseado no conto de E. Annie Proulx, já é ousado ao cogitar o homossexualismo entre cowboys. O conceito de cowboy carrega o estereótipo de homem americano, viril, machão e truculento. De fato os dois cowboys, Jack (Jake Gyllenhaal) e Ennis (Heath Ledger), seguem essa estrutura clássica. Jack adora rodeios e pretende ser um grande cowboy, ao molde cinematográfico. Ennis é calado, sisudo e deseja adquirir um rancho para viver a vida. Eles são autênticos cowboys e desta forma, a estrutura estética das personagens, gays, nunca é estilizada. Não há trejeitos homossexuais, que muitas vezes são usados no cinema e acabam soando preconceituosos. Ang Lee posiciona a câmera sempre buscando o olhar dos dois, o que reflete a essência da relação amorosa entre eles.
O relacionamento entre os cowboys tem seu início em meados dos anos 60 e a narrativa se estende por cerca de 20 anos. Portanto, o filme termina ambientado na década de 1980. Se bem nos lembrarmos é nesta época que surge efetivamente entre a sociedade a AIDS (na verdade a AIDS surge no fim década de 1970), que era vulgarmente conhecida como a “praga gay”. Interessante como essa informação pode ser útil para entender o destino de Jack na narrativa - o preconceito aliado ao medo. O roteiro explora com eficiência a dificuldade que era, e acredito que ainda é, admitir o homossexualismo para sociedade. A visita de Ennis a família de Jack caracteriza com esplendor essa dificuldade. Os pais sabem que Ennis é um possível namorado de Jack, mas sempre o tratam como amigo do filho. Ennis também faz o mesmo. As barreiras sociais e falsamente éticas impediram que, ao longo dos 20 anos, desde a montanha Brokeback, eles pudessem ficar juntos.
O roteiro primoroso nas mãos de Ang Lee torna-se uma obra de arte. Ressalto a escolha das locações e as construções visuais e enquadramentos do diretor em parceria com o diretor de fotografia Rodrigo Prieto. As belas imagens enchem os olhos do espectador. A composição do rebanho de ovelhas sendo pastoreada pelas montanhas não sai da minha lembrança. A cena valoriza a importância de assistir ao filme numa sala de cinema, pois receio que ela não seja absorvida com o mesmo impacto através do DVD. Mas as belas imagens só se consolidam no espectador com a trilha sonora tênue e triste de Gustavo Santaolalla e Marcelo Zarvos. Ela compõe com ligeira tristeza as lacunas propositais das cenas. Notem a despedida de Jack e Ennis. Eles mal se despedem e Jack pega a caminhonete e vai embora. Parece faltar um adeus ou um até logo. A trilha sonora coloca essas palavras na cena.
É difícil elucidar o primor da direção de Ang Lee sem utilizar inúmeros parágrafos. Saliento duas seqüências que devem ser conferidas com atenção e demonstram a habilidade do diretor. Primeira, o reencontro de Jack e Ennis após quatro anos, quando a esposa de Ennis, Alma (Michelle Williams), o vê beijando Jack. Mesmo que o espectador seja simpático à relação entre os cowboys, não há como não ter pena da esposa ou raiva deles. A situação em que ela é posta a incomoda a partir de então e também incomoda o espectador. Ang Lee suscita o preconceito mais intrínseco do espectador. “Ser traída até entendo, mas por outro homem? Aí não dá”. A segunda seqüência é a de Jack impondo respeito ao sogro em relação à educação do filho. Ele impõe seu papel de homem da casa, e demonstra ao filho que é preciso ter respeito pela mãe e pelo pai. Abre-se então uma discussão extremamente salutar: O fato de um homem ser homossexual não faz dele uma mulher ou um ser afeminado. As atribuições de caráter referente ao gênero (masculino ou feminino) não mudam com a mudança de orientação sexual. É possível ser um bom pai e transmitir exemplos paternos e masculinos ao filho sendo homossexual? Acredito que sim. O roteiro convida o espectador a pensar sobre este aspecto.
Porém, o maior acerto da direção de Ang Lee é conseguir uma atuação ímpar na carreira de Heath Ledger. Sente-se nitidamente que ele foi bem acompanhado durante todo o processo de composição da personagem. Ennis possui um forte sotaque do oeste americano, além de uma voz bem nasalada. Introspectivo, ele expõe suas emoções nas contidas expressões que demonstra. Neste ponto, pode-se sentir a mão do diretor. Heath Ledger nunca esboçou talento para ser um bom ator durante a carreira, mas a paciência oriental de Ang Lee transformou a rocha em areia. Uma atuação suave e crescente que dilacera o espectador vendo-o envelhecer pobre, triste e sem conseguir o amor de sua vida. Jake Gyllenhaal também está ótimo como Jack. O ator dispensa comentários, e creio que sua atuação é apenas a primeira de uma carreira brilhante que virá.
Outro ponto que necessita ser comentado é o trabalho de figurino e a maquiagem. A passagem do tempo da narrativa é percebida pelas mudanças da moda. Os traços estéticos característicos das décadas de 1960, 1970 e 1980 ficam nítidos e ajudam o espectador a acompanhar quantos anos passaram desde o início do romance. O bigode, as costeletas, as roupas, os adereços country e os cabelos femininos mostram a evolução do tempo. Durante a seqüência final, uma série de closes em Ennis mostra queimaduras de sol no rosto, abaixo dos olhos, o que caracteriza o envelhecimento de um trabalhador do campo. A maquiagem tem um papel importante nesta cena. Através dela o espectador percebe quanto tempo Ennis carrega a tristeza que compõe a cena. Rugas e um pouco de cabelos brancos resolveriam o mesmo problema, mas o detalhismo da equipe do filme dão ao trabalhador do campo a face que ele realmente deveria ter. São os detalhes, inúmeros que não consigo citar todos, que fazem da direção de Ang Lee um espetáculo para o público. A obra prima do diretor não só nos faz refletir sobre o preconceito relacionado à orientação sexual, mas também de como vinculamos a nossa felicidade aos parâmetros sociais. É melhor ser advogado a sambista, um homem bem casado a homossexual, um jornalista a um cineasta, etc. Aceitamos o que é sócio-economicamente viável à nossa real felicidade. Apesar do pano de fundo gay, O Segredo de Brokeback Mountain fala sobre estórias de amor mal-sucedidas. Seja o amor de homem por outro, de uma mulher por outra, de uma pessoa por uma carreira ou um lugar, a não concretização deste amor pode deixar seqüelas irreparáveis em um ser humano. Para o mundo entender melhor a tristeza do homem moderno, talvez seja preciso entender quanto este mundo o censurou.
O Segredo de Brokeback Mountain (2005)
Direção: Ang Lee
Elenco: Heath Ledger, Jake Gyllenhaal, Randy Quaid, Anne Hathaway, Michelle Williams.
Gilvan Marçal - gilvan@gmail.com
Excelente crítica, Gilvan.
ResponderExcluirAcho que não resta nada a falar. Vc acha que Jack foi realmente assassinado ou aquelas imagens são fruto da imaginação de Ennis?
um abraço, Marcos
Grande Amigo
ResponderExcluirAgradeço pelo elogio, estava precisando. Senti uma dificuldade tremenda em fazer essa crítica.
A cena do suposto assassinato de Jack é tão sutil que cria inúmeras interpretações. Talvez o pneu tenha estourado mesmo, mas é mais facil acreditar que ele tenha sentido o peso do prencoceito. Só um diretor oriental como Ang Lee teria tanta sutileza. É uma cena que vai ser discutida por anos. Cada um pode interpretá-la como quiser. Ai que está a beleza, e por isso considero o filme obra prima.
Meu ponto de vista é que realmente aconteceu o assassinato. Jack era a vontade com sua sexualidade. Ele queria ter relações sexuais, mas não aguentava esperar as temporadas com Ennis. A cena do México elucida isso. Com certeza ele deve ter tentado algo na região onde residia e assim teve o trágico final.
É isso mesmo, acho que essa sutileza do diretor permite enquadrar o filme como um grande filme (sem falar no roteiro, fotografia, atores, etc...).
ResponderExcluirAssisti Weather Man e gostei muito também. É incrível como Nicolas Cage oscila tanto nas suas interpretações. Ele está muito bem nesse filme.
Um abraço, Marcos
Gostei muito de "O Segredo de Brokeback Mountain". Estou até terminando a crítica... Adorei "O Sol de Cada Manhã" e Nicolas Cage está realmente maravilhoso nele!
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